Arte requentada

Arte requentada
Photo by Denise Jans / Unsplash

Falando diante de alguns dos artistas mais influentes do planeta, Conan O’Brien arrancou aplausos quando anunciou que a cerimônia do Oscar havia sido produzida sem o auxílio de IA. No entanto, o que parecia uma afirmação política, no fim talvez fosse apenas o gancho para uma piada: em vez de IA — ele completou — teria-se optado por trabalho infantil.

Mas, apesar da ambiguidade e do humor questionável, o apresentador acertou ao levantar essa bola: Hollywood é, hoje, um dos principais palcos da batalha travada entre artistas e empresas de tecnologia a respeito da IA.

Desde o lançamento meteórico do ChatGPT, espalha-se o temor de que não apenas os trabalhos braçais e intelectuais, mas também os criativos possam, em breve, ser assumidos pelas máquinas. Na semana passada, esse temor levou músicos de renome — como Paul McCartney, Elton John e Dua Lipa — a assinarem um apelo ao governo britânico para abortar um projeto que flexibilizaria direitos autorais para empresas que treinam modelos de IA no Reino Unido.

Se aprovado, o projeto daria a essas empresas — e seus usuários — o direito de utilizar conteúdo protegido sem ter que pedir permissão ou compartilhar os lucros com o proprietário. Um modelo de IA poderia, por exemplo, ser treinado em cima das canções de Elton John e aprender a gerar melodias que seguem o estilo do músico, mas não teria de oferecer nenhum compromisso moral ou financeiro em troca. Ou seja, aquilo que hoje já acontece de forma ilícita, em vez de ser penalizado pela lei, receberia a sua chancela: uma mudança que desapropria o artista do seu intelecto e o transforma num molde para qualquer um explorar, como um filtro do Instagram.

Proponentes do projeto alegam que o Reino Unido — há séculos um estaleiro de grandes artistas — precisa dessa flexibilização para não ficar para trás na corrida da IA. Em outras palavras: os criadores estariam com os dias contados e deveriam ser sacrificados em nome do futuro.

Embora questionável dos pontos de vista técnico, econômico e social, essa perspectiva ecoa com as ambições de uma fatia cada vez mais poderosa do empresariado e da política. Assim como aplicativos de transporte vêm apostando em carros autônomos para se livrarem dos motoristas, plataformas de conteúdo sonham com um mundo em que filmes, músicas e memes são produzidos em data centers, sem os custos e as intempéries de criadores humanos. Ademais, a industrialização do conteúdo também interessa à extrema direita, que encontra na comunidade artística um de seus rivais ideológicos mais espinhosos. Essa congruência é parte fundamental da agenda tecnolibertária que aproxima o Vale do Silício da atual gestão em Washington: uma utopia na qual as big techs mandam em tudo e os EUA mandam em todos.

Mas, para aquém do fenômeno sociológico, o que emputece os artistas é que eles estão sendo roubados.

Os modelos de IA que temos hoje são construídos em cima do paradigma de que nada se cria, tudo se copia. Enquanto nós, seres vivos, temos acesso a vivências empíricas — sair na rua, se apaixonar, assistir ao Oscar — a IA apenas regurgita os dados que fizeram parte de seu treinamento. Não à toa, as empresas por trás empregam tecnologias sofisticadas para abocanhar dados em escala — e em violação a direitos autorais — a fim de atualizar seus modelos com as novidades do mundo. Sites, filmes, tweets, bulas de remédio, comerciais de margarina, contos eróticos: tudo o que puder ser coletado ajuda o modelo a se tornar mais atual e verossímil. Afinal de contas, a IA não tem uma compreensão intrínseca dos conceitos que guiam a vida humana, como amor, ódio, violência, justiça, nojo: ela precisa recorrer a padrões estatísticos entre palavras para computar respostas que pareçam adequadas.

“Chocolate”, por exemplo, consta em diversos lugares acompanhada de "presente", "namorado" e “romântico”, mas também é comum nos arredores de “sobremesa”. Nesses casos, aparece com frequência ligada a “brigadeiro”, que por sua vez anda de mãos dadas com “beijinho”. “Beijinho” e “doce” têm forte associação com “sobremesa”, mas também figuram juntas numa canção famosa que inclui várias outras palavras relacionadas a "namorado" e “romântico”. E assim vai se formando uma nuvem, um vetor multidimensional de palavras e suas associações, que pouco a pouco ensina a IA a correlacionar o amor à doçura. É comparável a um psicopata que aprende a identificar sinais de sentimentos que ele não tem capacidade de sentir para que possa se comunicar com aparência de normalidade: simulacros poderosos e perigosos.

E como seria um futuro em que esses simulacros assumem um papel central na nossa produção cultural? Em se tratando de Hollywood, talvez não tão diferente do presente.

De épicos de guerra a comédias românticas, de sagas de super-heróis a dramas adolescentes, as grandes produções americanas vivem de requentar as mesmas histórias com novos temperos. Se antes esse engessamento era imposto pelos mandachuvas da indústria — que não queriam arriscar os lucros fugindo de modelos comprovados de sucesso —, hoje ele é sustentado pela autoridade analítica dos dados. Cada vez mais, estúdios desenham seus próximos lançamentos com base em diretrizes numéricas: bilheteria, reproduções em plataformas de streaming, engajamento em redes sociais, venda de mercadorias licenciadas. O que determina se o próximo James Bond enfrentará um vilão de sotaque russo, alemão ou chinês é menos a mente de um artista que a resposta de uma complexa equação, calibrada para maximizar o retorno sobre o capital investido. A pergunta não é mais qual história queremos contar e sim qual história devemos contar.

Mas longe de retratar uma verdade objetiva sobre as preferências do público, os dados adicionam ainda mais espelhos à sala, reforçando aquilo que já foi testado e tem retorno garantido: o mesmo processo que transforma feeds em ecos das nossas interações anteriores. E num mundo exausto, onde as pessoas recorrem mais e mais ao conforto psicológico de reassistir às mesmas histórias, a repetição é, sem dúvida, uma aposta mais segura que a autenticidade.

Parametrizado dessa forma, o trabalho dos profissionais criativos foi perdendo seu componente expressivo e tornando-se cada vez mais industrial. O dia-a-dia do artista vai se tornando mais dedutivo que indutivo: é achar respostas certas para enunciados claros — uma tarefa mais adequada às capacidades de uma máquina do que de uma pessoa.

É nesse contexto que a IA entra em cena, trajando a falácia de que veio para ajudar, não para substituir: uma armadilha sedutora.

Deslumbrado pela conveniência e pressionado pelo pragmatismo da indústria, o artista se vê tentado a recorrer à IA para gerar ideias e preencher lacunas. Uma frase aqui, uma ilustração ali: é fácil, é rápido, muitas vezes é suficiente. Sem se dar conta, ele vai se transformando em operador de máquina — acomodado e perfunctório — até que enfim chega o dia em que a máquina não precisa mais de um operador: uma revolução industrial como tantas outras.

Portanto, a IA precisa ser encarada não como uma disrupção, mas uma mera continuidade da industrialização que começou décadas atrás, e da qual Hollywood sempre foi a maior força motriz. A IA não veio para tornar redundante a arte como expressão pessoal e subjetiva; ela jamais conseguiria sufocar essa pulsão. Ela veio para tornar redundante o artista como profissional, como engrenagem da indústria cultural. A batalha não é filosófica; ela é financeira.

Na utopia tecnolibertária, um estúdio não precisaria de atores, diretores e compositores para produzir um filme: bastaria despachar pedidos para uma IA e deixá-la costurar parâmetros atuais com referências do passado. Por que contratar Elton John se é possível mandar um computador fazer o seu trabalho? É mais barato, mais rápido, menos arriscado. Não demanda papelada nem debates criativos: basta pedir, iterar e usar.

Claro que uma obra criada dessa maneira, ainda que sirva de entretenimento enlatado, não tem nenhum valor artístico: ela carece de intenção, sinceridade, autenticidade; ninguém está se expressando através dela. Mas o público se importa? Considerando que este mesmo público já está condicionado a obras requentadas, não se pode esperar muito discernimento e resistência. Os incomodados que recorram à arte independente — e torçam para que ela sobreviva à revolução.

Mas enquanto em Los Angeles essa perspectiva é recebida com pânico e revolta, um pouco ao norte, em San Francisco, ela é digerida com um misto de fascínio e resignação: quem não a considera desejável, a considera inevitável. Por lá, muito se fala na Singularidade: o hipotético momento em que humanos e máquinas se tornariam uma e a mesma coisa. Mas, enquanto essa narrativa costuma focar no avanço tecnológico — as máquinas se tornando cada vez indistinguíveis dos humanos — talvez seja mais adequado retratá-la pelo ângulo oposto: os humanos se tornando cada vez mais maquinais, parametrizados, substituíveis e deferentes aos donos da circuitaria.

Para um público de autômatos, talvez a IA arranque mais aplausos que qualquer artista.