Conivência e conveniência
Subindo ao palanque para celebrar o resultado histórico nas eleições de fevereiro, Alice Weidel se permite sorrir, mas sem exageros. De camisa branca, paletó escuro e o cabelo preso para trás, ela parece menos uma líder populista do que uma diretora financeira prestes a despachar os números do trimestre. Mas não nos deixemos levar pelas aparências, pois Weidel conhece muito bem o seu público: o eleitorado alemão é alérgico a carisma — seu maior trauma foi um homem cheio de caprichos e personalidade.
Um trauma que Weidel vem se esforçando para ressignificar desde que assumiu o comando da Alternative für Deutschland (AfD), partido conservador e ultranacionalista que acaba de conquistar a segunda maior bancada do Congresso alemão. Integrante da AfD desde 2013 e deputada federal desde 2017, Weidel ganhou notoriedade ao defender que o nazismo teria sido um movimento de esquerda — afirmação festejada por seus correligionários brasileiros, cansados de comparações incômodas.
No entanto, talvez ainda mais que sua perspectiva única sobre o passado, o que vem atraindo holofotes é a vida pessoal de Weidel. A ex-consultora de quarenta e seis anos parece tomar liberdades não apenas em relação aos livros de História, mas também ao seu próprio discurso político.
Embora encabece um partido hostil a imigrantes e contrário aos direitos LGBT, Weidel é lésbica e mantém uma união estável com Sarah Bossard, nascida no Sri Lanka e adotada por um casal europeu.
Embora seu partido seja irredutível quanto ao modelo tradicional de família, Alice e Sarah são mães de dois meninos.
E talvez o ponto mais emblemático: embora lidere um partido nacionalista alemão, Weidel e sua família residem na vizinha Suíça; quem sabe, para se proteger da onda conservadora — ou para se beneficiar de impostos mais baixos.
Ao personificar tantos atributos antagônicos à sua própria agenda — começando pelo simples fato de ser mulher —, Weidel se mostra muito mais que uma ode à hipocrisia: ela é o atestado de como os extremistas são, hoje, os verdadeiros pragmatas.
É difícil conceber que tamanha impostura sobreviveria em qualquer outro nicho da fauna política. Imagine um candidato de esquerda que fez carreira em private equity, ou uma liderança do partido verde que tira férias de jatinho: candidaturas natimortas, que mesmo se passassem do crivo partidário, logo seriam canceladas a óbito.
Mas perante os eleitores da AfD, os progressismos afetivos de Weidel não são razão para revolta. Nem mesmo o núcleo duro do partido, habitado por integrantes do movimento neonazista, parece incomodado. Talvez isso se deva a uma questão de ascendência: além de loira, Alice é neta de Hans Weidel, um notório juiz da SS empossado pelo próprio Hitler. Quem melhor que ela para representar esse pessoal em Berlim? Um pouco de conivência em troca de muita conveniência.
A AfD vem crescendo com o apoio de diversos grupos para quem essa conta parece fechar. Idosos que cresceram na Alemanha Oriental e sentem que foram atropelados pelo ocidentalismo pós-reunificação. Homens jovens que atribuem seus fracassos à agenda progressista. Bilionários astutos que enxergam nessa revolução cultural uma janela para reformas hipercapitalistas. Se a vida pessoal de Weidel condiz com seu discurso, é irrelevante. A ordem do dia é resultado, não coerência.
Vanguardista da nova direita, Trump também canalizou agendas que ele não honrava na privacidade de seu lar. Por exemplo, o presidente americano galgou o apoio messiânico dos evangélicos apesar de uma ficha que o arriscaria de pegar fogo na porta de uma igreja. Seu segredo? Pastores não demandam grandes gestos de fé: abençoado seja aquele que levar a agenda adiante.
Na campanha presidencial de 2018, Bolsonaro também incorporou um papel que não condizia com sua biografia: o de voz do capital. Embora suas três décadas de Congresso tenham deixado um retrogosto sindicalista, Bolsonaro convenceu a elite brasileira de que era apenas um neoliberal assintomático. E seu mandato começou cumprindo a promessa, com uma cavalaria de reformas pró-mercado e Paulo Guedes galopante em seu posto de super-ministro. Mas, tão logo o vento mudou — soprado pelo caos da pandemia — Bolsonaro descontinuou o Capitão PIB, atirou Guedes de escanteio e abraçou programas sociais eleitoreiros. Foi grande a decepção nos arranha-céus e nas quadras de beach tennis, mas para muitos, o cálculo não mudou: Jair continuava sendo uma opção melhor que Lula — antes um aliado pragmático que um inimigo ideológico.
Foi-se o tempo em que extremistas alçavam voo embalados por convicções sinceras e utópicas, como Lênin e Hitler; o tempo em que ditador tinha aura de estadista. Como dizia Marx, na história tudo acontece duas vezes: primeiro como tragédia, depois como farsa. Hoje vivemos a era dos extremistas farsantes, para quem a ideologia é um vetor, não uma diretriz. Sua agenda se ajusta aos ventos da conveniência: tudo é utilitário, portanto descartável.
Mas, embora esse pragmatismo predatório seja efetivo para congregar mandachuvas em torno de uma campanha, ele é difícil de sustentar quando se assume a caneta. Numa sala onde todo mundo só quer levar vantagem, todo jogo é de soma zero.
É um engano assumir que a congruência de interesses entre as bases eleitorais da nova direita representa um alinhamento político genuíno. O extremismo é, hoje, um mercado de conivências e conveniências que aproxima diferentes grupos insatisfeitos com o status quo cujas agendas antidemocráticas não são bem-vindas nos partidos tradicionais. Como coordenador desse mercado, cabe ao extremista farsante negociar pautas, inflamar o eleitorado — e entregar resultados. E é bom que esses resultados venham rápido.
Ainda nem completou o primeiro semestre de gestão e Trump já está sofrendo para entrosar os interesses nacionalistas do movimento MAGA com a pulsão anti-Estado do Vale do Silício. Escolher não escolher vai se tornando cada vez mais complicado. Não à toa, Trump tem tanta pressa: ele sabe que vai precisar de muito mais que bravatas para retornar o capital financeiro e eleitoral dos acionistas de sua campanha.
A derrocada de Bolsonaro serve de alerta: ao tentar malabarizar lavajatistas, militaristas, grileiros, crentes, milicianos e sócios da XP, ele acabou derrubando as bolas e o semáforo abriu. O resultado foi não apenas a derrota nas urnas, mas também a inelegibilidade, a prisão iminente e a abertura da extrema direita para novas lideranças, como Pablo Marçal.
Mas enquanto Trump corre contra o tempo e Bolsonaro corre da polícia, Weidel, por ora, tem toda a razão para sorrir: ela controla uma bancada forte, mas ainda no confortável posto da oposição. Apesar dos avanços, o foco da AfD deve continuar sendo o bloqueio de pautas progressistas; ainda há um cordão sanitário muito bem vedado que os impede de levar adiante as próprias ideias. No entanto, com os ventos que andam soprando pela Europa, a ascensão de Weidel à chancelaria é uma possibilidade real e próxima. Fica a dúvida se, com a caneta na mão, ela teria a destreza necessária para administrar os fiadores bastante heterogêneos de seu partido — e para se defender caso eles se tornem menos coniventes com suas hipocrisias.