Irrealpolitik
— O que a mídia não entende — dizia o tweet — é que Trump deve ser levado a sério, mas não ao pé da letra.
Já me deparei algumas vezes com jovens trumpistas papagaiando essa máxima, sem dúvida extraída de algum podcast da machosfera. Fãs de ragebait, eles se divertem com a oposição estabanada, que pula em cima de toda granada jogada pelo presidente — e que de tanto berrar, está ficando sem voz.
Mas afinal, o que significa levar a sério sem levar ao pé da letra? Por exemplo, quando Trump ameaça surrupiar a Groenlândia, isso é um plano ou uma alegoria? E quando ele fala em disputar um terceiro mandato, ou em transformar a Faixa de Gaza numa riviera? Acredito que ninguém saiba separar o joio do trigo; nem mesmo o próprio presidente.
A distinção entre disse e quis dizer é pura dissonância cognitiva — um argumento a posteriori para ludibriar os membros do culto. Se Trump for adiante com uma ameaça, está comprovado: deve-se levá-lo a sério. Se não for, é piada pronta: quem mandou levá-lo ao pé da letra? O diabo escreve torto sobre linhas retas. No mundo dos fatos alternativos, o que determina a verdade é o autor, não a substância.
Mas a incontinência verbal de Trump — que promete, cumpre, volta atrás, nega, reitera, ameaça, desconversa — não é acaso e sim estratégia: a bagunça favorece o bagunceiro.
E se há debate quanto aos meios, não existem dúvidas quanto aos fins de Trump 2.0: internamente, esmagar as instituições e a oposição para cimentar-se no poder; externamente, espremer ganhos rápidos de aliados enfraquecidos para exibir em casa como espólios do America First.
Mas apesar de todas as granadas que ele joga serem sérias, nem todas explodem ao pé da letra — é aqui que mora a graça. Algumas são de fumaça, para atordoar a mídia com possibilidades absurdas e becos sem saída. Outras são puro barulho, para garantir manchetes e manter acesa a chama da guerra cultural. Ainda outras são meros devaneios desprovidos de valor tático; sintomas de quem trocou o conselho pela claque.
O dilema da mídia, contudo, é que quando ele joga uma granada, ninguém sabe o que vai acontecer — e a única opção é assumir o pior. Essa é a realidade de enfrentar alguém que entrou no jogo com um par de ás na mão: boa parte do que ele ameaça, ele pode mesmo acabar fazendo.
Cada vez mais desinibido no uso da mentira e do hard power, Trump parece ter feito um curso no YouTube sobre realpolitik — doutrina que defende uma liderança pragmática, sem amarras morais e vieses ideológicos, com pleno foco na única coisa que interessa: consolidar e manter poder.
Uma doutrina cujo mais célebre praticante foi Otto von Bismarck, o chanceler de ferro que comandou a ascensão meteórica da Prússia como potência europeia. Assumindo o cargo após as revoltas populares de 1848, Bismarck tinha aversão ao idealismo, ou idealpolitik — doutrina de ascendência iluminista que impele governantes a agirem conforme valores morais inegociáveis. Para Bismarck, o idealismo era pura ingenuidade, pois requer que todos se algemem às mesmas regras: se um único jogador romper o pacto, todos os outros estarão em desvantagem.
Um homem de resultados, Bismarck acreditava que a sua função não era fazer o certo e sim o vantajoso — custe o que custar. Guiando-se por considerações práticas e um faro afiadíssimo, ele alimentou revoluções em países vizinhos, esmagou outras no seu quintal, mentiu, manipulou, causou guerras, venceu todas elas e deixou um extenso legado de lucidez e impiedade.
O apogeu de sua carreira foi a unificação do Império Alemão sob a tutela de Berlim, após uma vitória avassaladora contra os franceses. O local escolhido para a coroação do imperador Guilherme I foi a Galeria dos Espelhos do Palácio de Versalhes — uma projeção simbólica de poder com retrogosto de ragebait.
Assim como Bismarck, Trump também desdenha de bom-mocismos e nutre ambições imperialistas. É uma retórica que ecoa com um eleitorado embrutecido: de ultranacionalistas a evangélicos, de tecnolibertários a imigrantes anti-imigração, as bases do partido republicano são conectadas pela crença de que tudo no mundo é um jogo de soma zero. A inovação de Trump foi pegar essa crença — tão realista em sua essência — e transformá-la num ideal. A esquerda, a mídia, os imigrantes ilegais, os outros países: muita gente tentava levar vantagem em cima do cidadão de bem americano — e ele havia chegado para acabar com essa farra.
Unindo a inflamação do idealismo à desfaçatez do realismo, Trump logrou a fusão do certo com o vantajoso — uma reação catalisada com mentiras cada vez mais absurdas. O resultado é uma nação-culto onde ele é o real e o ideal: o que ele fala é a verdade; o que ele faz é o certo. Está lançada a doutrina que proponho chamar de irrealpolitik — ou irrealismo.
E como combater um irrealista? Eis a questão.
Um realista derrota-se com ideais fortes. Um idealista, com pragmatismo. Mas nenhuma dessas armas funciona quando o outro lado usa o escudo da ambiguidade com tanta destreza. Se fizer o que disse, é um homem de palavra. Se não fizer, é porque nunca disse. Quem controla o presente controla o passado.
Judicializar também não resolve: proibido é mais gostoso.
Por ora, concedo que o irrealismo é um veneno sem antídoto: resiliente, complexo, imprevisível. É como o tiki-taka na era de ouro do futebol espanhol.
Quem sabe, a melhor forma de derrotar um irrealista seja deixá-lo perder sozinho. Forçado a tomar posição em questões que dividem seu eleitorado, a margem para ambiguidades vai se estreitando. Quando Trump defende Musk, ele irrita o MAGA. Quando defende a guerra comercial, irrita o Vale do Silício. Pouco a pouco vão surgindo correntezas de discórdia dentro da nação-culto irrealista. A memória de um entra em conflito com a memória do outro. Deixa de existir uma visão unificada do que é certo ou vantajoso. Fatos inconvenientes cavam túneis por baixo da muralha da mentira: a inflação sobe, os salários não acompanham. Pressionado, o líder não consegue mais se esconder com dissonâncias e granadas de fumaça.
Sonho distante? Veremos. É possível ser ambíguo quanto a muita coisa por muito tempo, mas não quanto a tudo, sempre.