O tal do bacalhau

O tal do bacalhau
Photo by Ricardo Resende / Unsplash

Milhares de quilômetros de águas congelantes separam a pequena ilha de Baccalieu da costa ensolarada de Portugal. Mas, localizada na remota província canadense de Newfoundland and Labrador, Baccalieu deve seu nome a um capítulo inusitado da História: a presença portuguesa na América do Norte. Um capítulo cercado de mistérios submersos no Atlântico, mas que em meio a tantas perguntas sem resposta nos ajuda a entender a origem da paixão de Portugal por um peixe que sequer existe em sua costa: o bacalhau.

O ano era 1499 — logo antes da chegada de Cabral ao Brasil — quando o navegador João Fernandes Lavrador retornava de uma expedição pelo Atlântico Norte. Uma viagem cujo objetivo era encontrar a especulada passagem noroeste que conectaria o Atlântico ao Pacífico sem ter que passar pelo temido Cabo da Boa Esperança. Esse sonho acompanhou as potências europeias por séculos, vitimando incontáveis marinheiros no caminho, e foi concretizado apenas no século 19, pelo irlandês Robert McClure — que foi obrigado a utilizar uma combinação de barcos e trenós. Mas embora não tenha encontrado a tal passagem, a viagem de Lavrador não foi perdida. Muito pelo contrário.

Ao Rei Manuel I ele contou ter descoberto uma terra gelada e distante, cujas águas eram abundantes em bacalhau. Seu relato despertou cobiça. Nem dois anos depois, Gaspar Corte-Real — herdeiro de uma capitania nos Açores — partiu rumo ao norte em busca da tal Terra Nova do Bacalhau.

Até hoje não existe um consenso quanto à localização de Bacalhaus, como também ficou conhecida — nem sequer se Lavrador de fato chegou a alguma terra, ou se tudo não passou de história de pescador. De uma forma ou de outra, a enorme ilha na costa leste do Canadá acabou batizada de Terra Nova, que os britânicos transformaram em Newfoundland; e as terras continentais adjacentes foram nomeadas Labrador em homenagem a Lavrador. Já Gaspar Corte-Real não teve um destino tão honroso.

Sua comitiva chegou a uma terra que hoje especula-se ter sido a Groenlândia. Em razão do gelo flutuante, não conseguiram aproximar-se, então seguiram adiante até o que se assume ter sido Labrador. Lá, como bons colonizadores, eles sequestraram cinquenta e sete nativos e os levaram de volta para Açores, onde os venderam como escravos. No entanto, dos três navios portugueses, apenas dois retornaram: o do próprio Gaspar se perdeu no oceano. Informado sobre o desaparecimento do irmão, Miguel Corte-Real organizou sua própria expedição — e encontrou o mesmo destino.

Em Saudades da Terra, o padre e historiador açoriano Gaspar Frutuoso vai ainda mais longe e afirma que não foi nem Lavrador nem algum dos irmãos Corte-Real quem primeiro chegou a Terra Nova, mas sim João Vaz Corte-Real — patriarca da família. De acordo com Frutuoso, essa viagem teria ocorrido em 1473 — ou seja, quase duas décadas antes de Colombo chegar à América do Norte. Contudo, esse relato carece de evidências confiáveis: talvez o padre estivesse apenas puxando a sardinha para seus conterrâneos.

Seja como for, a tentativa portuguesa de colonização nunca se concretizou. Em vez disso, ao longo do século 16 estabeleceu-se uma vasta operação de pesca de bacalhau na costa do Canadá e da Groenlândia. Para não estragar durante a viagem de volta, o peixe era seco e salgado conforme o antigo método viking, que os portugueses provavelmente aprenderam com nativos. Dos banquetes reais às tavernas lisboetas, o bacalhau logo virou febre. Era exótico, saboroso, simbólico — um ingrediente que somente uma grande potência marítima podia bancar. Mas a bacalhoada durou pouco: ainda no mesmo século, Portugal acabou perdendo espaço no Atlântico Norte e decidiu concentrar seus recursos nas rentáveis colônias tropicais. Com isso, o suprimento de bacalhau passou a depender do comércio com os britânicos — o início de um relacionamento tóxico que séculos depois culminaria na grande presepada de 1808. Importado, o bacalhau ficou caro e virou prato de gente rica. Saem de cena as postas brancas e delicadas, que derretem na boca; voltam as humildes sardinhas.

Foi somente no século 20, durante o Estado Novo, que ele retomou seu lugar na mesa do português comum. Esse retorno se deve ao próprio ditador Salazar, que lançou a Campanha do Bacalhau visando recuperá-lo como ingrediente cotidiano e símbolo nacional. A febre foi tamanha que Portugal voltou a enviar navios de pesca ao Atlântico Norte. Foi também Salazar quem presenteou o Canadá com uma estátua de Gaspar Corte-Real que hoje enfeita o centro de St. John's, capital de Terra Nova e Labrador. Longe de um gesto de simpatia, a estátua era uma tentativa diplomática de diminuir a pressão internacional sobre sua ditadura numa época em que o mundo se democratizava e descolonializava. A estratégia de Salazar era tentar uma inserção a posteriori de Portugal como influência histórica e cultural na América do Norte — e com isso conquistar a amizade dos canadenses e quem sabe até mesmo dos EUA. Não deu certo. A estátua logo tornou-se alvo de protestos que duram até hoje, tanto em razão do presenteador como do homenageado: talvez a única contribuição de Portugal àquelas terras tenha sido uma aula de tráfico humano. De todo modo, restam na região diversos lugares com nomes de origem portuguesa, como os vilarejos de Bonavista e Baie Verte — e a inabitada ilha de Baccalieu.

Já a influência no sentido oposto não pode ser negada: Portugal é hoje o maior consumidor de bacalhau do mundo. A pesca nas águas canadenses, contudo, acabou perdendo relevância. O bacalhau consumido pelos portugueses é, em quase totalidade, importado da Noruega e vendido seco, seguindo uma tradição que é raridade fora da lusosfera.

O bacalhau fresco, por outro lado, tem um lugar especial na culinária de diversos povos que vivem às margens do Atlântico Norte. Nas Ilhas Britânicas, por exemplo, ele é o peixe mais utilizado para o preparo do famoso fish & chips — orgulho de uma nação que navegou o mundo em busca de temperos e decidiu não usar nenhum deles. Na própria Noruega, ele obviamente é o ingrediente principal de muitas receitas. Dentre elas, destaca-se o sofisticado prinsefisk — onde o bacalhau vem acompanhado de caranguejo, aspargos verdes e creme de vinho branco. Já na Dinamarca, almôndegas de bacalhau — ou friskefrikadeller — são estrelas da gastronomia de rua. E na Islândia — a meio caminho entre a Europa e a Terra Nova — o bacalhau é um dos pilares da alimentação, tendo contribuído para a sobrevida de seu povo durante séculos de frio e fome.

O cotidiano da Islândia na Era Viking chega até nós em grande parte por meio de sagas: textos que costumam centrar-se em uma família e narrar acontecimentos ao longo de múltiplas gerações — estrutura que serviu de inspiração para Gabriel García Márquez em Cem Anos de Solidão. Através das sagas e corroborado por estudos geológicos sabemos que a Islândia tinha um clima bem menos severo do que hoje quando os vikings se estabeleceram por lá, em meados do século 9. Isso possibilitava o cultivo de grãos e a criação de animais, como vacas, cavalos e ovelhas. A pesca era mais comum no inverno, quando não havia como produzir alimentos em terra.

Com o passar do tempo, no entanto, a pesca foi ganhando relevância em razão de dois grande eventos que remodelaram a vida dos islandeses. O primeiro foi a cristianização da ilha — um processo que mudou não somente a estrutura da sociedade, como também as definições de certo e errado. O consumo da carne de cavalo, por exemplo, tornou-se proibido.

E o segundo fator foi a chegada da Pequena Era do Gelo, que esfriou significativamente a Europa entre os séculos 14 e 19. Na Islândia, o cultivo de grãos tornou-se quase impossível. A pecuária teve de concentrar-se em ovelhas, mais econômicas e resistentes que outros animais.

Como produto tanto da cristianização como do frio, as casas comunais vikings — amplos galpões nos quais se cozinhava, comia e vivia — deram lugar a casinhas unifamiliares semi-enterradas, que eram mais protegidas do frio. A comida, antes preparada em buracos no chão aquecidos com pedras quentes, passou a ser cozida em fogões. E a terra escassa fez os islandeses se voltarem ao mar.

O bacalhau, abundante nas águas geladas em volta da ilha, servia não apenas de alimento, mas também de exportação, trocado por grãos e outros produtos essenciais que vinham da Europa. A sociedade islandesa foi dando um jeito de sobreviver, embora o preço fosse tornar-se dependente dos mercadores europeus — em especial os dinamarqueses. Mas essa relativa estabilidade chegou ao fim quando estouraram as Guerras Napoleônicas e navios mercantes deixaram de circular livremente pelo Mar do Norte.

A Dinamarca, que decidiu não decidir de que lado estava, acabou preventivamente atacada pelos ingleses. Da noite para o dia, não apareciam mais na Islândia os navios cheios de trigo e cevada que eram essenciais para sua sobrevida. Abandonados à própria sorte, os islandeses precisaram uma vez mais reinventar sua maneira de se alimentar. A solução foi desenvolver técnicas para o cultivo de vegetais, até então bastante raro na ilha. Deu certo em especial com a pastinaca, o repolho e a batata.

Como a primavera após um longo inverno, na ilha assombrada pela fome começou a desabrochar uma gastronomia única, que não apenas nutria os buchos, mas alegrava os corações. O surgimento de escolas para meninas transformou esse movimento em uma verdadeira revolução. Alfabetizadas, elas tomaram a frente na formalização da cultura alimentar de seu povo, documentando a história e anotando receitas. Hoje, a gastronomia islandesa tem destaque global, honrando os métodos e ingredientes do passado com receitas que valorizam o fresco e o local.

Dentre essas receitas, a que mais me encanta é o plokkfiskur, um prato criado originalmente para dar mais volume ao peixe — estufado com batatas e creme —, e que hoje é usado pelos islandeses para aproveitar restos e rebarbas de bacalhau. Mas não se deixe levar por essa introdução: é uma receita absolutamente deliciosa.

Tanto em textura como em sabor, o plokkfiskur se assemelha ao bacalhau com natas, clássico português que, no Brasil, foi eclipsado pelo bacalhau à zé do pipo, conceitualmente similar. É um prato de vó — delicado, cremoso, afetivo. Como tantas outras receitas que nasceram da escassez, não existe um jeito único de preparar o plokkfiskur. Eu gosto do peixe e das batatas bem amassadinhos, quase em forma de purê; outros preferem uma textura mais pedaçuda, quase como numa bacalhoada.

Para preparar um plokkfiskur à minha moda, comece cozinhando as batatas em bastante água salgada até ficarem em ponto de purê. Uma vez cozidas, amasse-as com um garfo ou um amassador.

Em outra panela, coloque o bacalhau para cozinhar durante uns cinco minutinhos. Enquanto isso, aproveite para picar algumas cebolas (deixo a seu critério quantas).

Então derreta um tablete de manteiga num tacho bem fundo e refogue a cebola até dourar. Adicione uma pitada generosa de pimenta-do-reino, sal e noz-moscada — e se você tiver disposto a uma licença poética, um pouquinho de ervas da Provence.

Essa mistura nós vamos agora transformar em um molho bechamel. Adicione um pouco de farinha e misture bem, até formar uma pasta. Depois, regue um pouco de leite e vá mexendo até obter uma consistência cremosa. Pronto o bechamel, adicione o bacalhau cozido e amasse, formando um purê de peixe. Por fim, adicione a batata e um pouco de creme de leite. O resultado deve ter a textura macia e cremosa de um escondidinho, e um sabor delicado de peixe, bastante perfumado pelos temperos.

Para finalizar, outra licença poética: polvilhe um pouco de parmesão e leve ao forno para gratinar.

Tradicionalmente, o plokkfiskur é servido em cima de uma fatia de rúgbrauð — um pão de centeio levemente adocicado — com um pouco de manteiga. Sim, mais manteiga. Essa é uma refeição para aquecer o coração, não para bater as macros do seu projeto verão. Aliás, muito me incomoda essa associação, comum na Europa e no Brasil, entre peixe e dieta. Por que a vaca e o porco vêm com guarnições indulgentes, enquanto o peixe vem todo anêmico, na companhia de legumes a vapor ou arroz multigrãos? Revoltante. A História da Islândia testemunha o contrário.

Portanto, venho aqui convocar todos os amantes dos sabores do mar a experimentarem essa receita deliciosa que não poupa nem calorias nem alegrias — e que tem sabor de Páscoa para quem cresceu sob influência portuguesa. Góða lyst!