Outrora

Outrora
Photo by Eric Krull / Unsplash

É domingo de sol em Berlim. Depois do café, saio para dar uma volta pelo Mauerpark — gramadão que margeia um trecho bem preservado do Muro. Aos fins de semana, ele recebe uma feirinha hippie, onde artistas locais dividem o espaço com cacarecos da China e acessórios falsificados.

A cada cinco minutos, passa um bonde na avenida e descarrega mais uma leva de jovens, que vêm na companhia de seus cãezinhos, namorados, amigos. Muitos vivem ali por perto, em Prenzlauer Berg — coração da contracultura na época da Alemanha Oriental.

Sem grandes planos, sento num banquinho e observo o movimento. Fixo o olhar em dois rapazes que descem do bonde e entram na feirinha. Um deles usa mullet e um bigodinho Freddy Mercury. Ele aproveita para enrolar um cigarro enquanto seu amigo prova uma bomber de segunda mão.

Mais adiante, uma nuvem de garotas envolve a barraquinha de velas aromáticas. Vejo ombreiras, franjinhas, sneakers Y2K e óculos de sol em diversos tons de neon.

Enquanto isso, do outro lado do parque um músico amador arranha Mrs. Robinson no violão e voz.

Não fossem os iPhones, seria difícil situar essa cena em 2025. São tantos retalhos anacrônicos que eu me sinto num brechó a céu aberto.

Admito que a nostalgia é um sentimento gostoso, universal, talvez até inevitável. Enquanto a saudade nos conecta com um passado que vive na memória, a nostalgia acessa um que vive na imaginação e que só conhecemos indiretamente, através de relatos, imagens, sons. Eu tenho saudades do meu avô, e de escutar o Bolero em sua vitrolinha, mas seria descabido dizer que tenho saudades de Maurice Ravel ou dos anos 20 — por eles, tenho nostalgia.

Não tem nada de errado em fantasiar com o passado — o problema é dissolver-se nele. Em meio a tanta estética emprestada, fica difícil de encontrar uma identidade para o presente. Qual é a cara dos anos 2020? Quais imagens fazem dessa nossa década um momento memorável, pelo qual as pessoas do futuro irão suspirar de nostalgia?

Werner Herzog, ícone do Novo Cinema Alemão, certa vez disse que a nossa civilização morria de fome pela falta de imagens adequadas; que vivíamos cercados de referências puídas pelo cinema e a televisão, e não tínhamos mais com o que alimentar nossa imaginação.

Essa reflexão veio numa entrevista com Roger Ebert, famoso crítico de cinema, em 1982. Muita coisa de interessante aconteceu nesse ano: Michael Jackson lançou o álbum Thriller; Indiana Jones apareceu pela primeira vez, em Caçadores da Arca Perdida; faleceu Leonid Brezhnev; um padeiro de Verona inventou a ciabatta.

Foi também em 1982 que Herzog dirigiu uma de suas obras mais famosas: Fitzcarraldo. O filme retrata um irlandês radicado no Peru que sonha em construir uma ópera no remoto povoado de Iquitos. Para financiar esse sonho, ele embarca na missão alucinada de transportar um barco através da mata e das montanhas, tentando alcançar terras amazônicas ricas em borracha.

Será que na época em que esse filme estava nos cinemas — época em que meus pais eram jovens — nós também vivíamos regurgitando a estética das décadas anteriores?

Meio século se passou e muita coisa aconteceu desde então: faleceu Michael Jackson; Indiana Jones ganhou mais quatro filmes; caiu o Muro; surgiu a internet; um bar nos alpes italianos inventou o Hugo Spritz.

Como podem faltar imagens num mundo tão vasto e acelerado, de referências quase infinitas? Não, a nossa imaginação não morre de fome — ela está é obesa.

Imerso nesse pensamento, passo por uma barraca de discos, onde um casal namora o LP de Der Komissar, do inesquecível Falco. O ano de lançamento? 1982. Aperto o passo e entro em outro corredor da feirinha, onde dou de cara com mais pochetes e bootcuts e ouço ainda mais alto o maldito refrão de Mrs. Robinson. Socorro.

Penso em mudar de bolha, mas logo constato que isso traria pouco refresco: os progressistas suspiram pelos anos 70; os conservadores, pelo século 17.

Do lado de lá do muro da verdade, homens aspiram a um ideal nostálgico de masculinidade: querem viver a lei do mais forte, mandar e desmandar, ser chefes de famílias nucleares. Enfeitiçadas pelo fenômeno trad wife, garotas idealizam uma vida bucólica de devoção a Deus e a um marido provedor: ler a Bíblia, cuidar da prole, preparar o pão na chapa começando com um maço de trigo e uma vaca leiteira.

Há ainda um terceiro grupo, de alinhamento político incerto: os jovens nostálgicos que vivem na pira do old money. Fascinados por aquilo que é tão exclusivo que nem o dinheiro compra, eles nutrem fantasias aristocráticas através de símbolos antigos de sofisticação: regras de alfaiataria, marcas de silent luxury, hipismo, esgrima, enologia.

Não sei nem dizer quem me entristece mais: a Yoko Ono do Mauerpark, a Sinhá Moça do Jardim Europa ou a Maria Antonieta do Vestiaire Collective. Todas me parecem perdidas num escapismo que talvez seja o retrato do nosso tempo.

Não que a nostalgia seja um fenômeno recente — longe disso. O Renascimento, por exemplo, era nostálgico pela Antiguidade, assim como os Vitorianos tinham fascínio pelos Góticos. Tolkien criou seu universo em cima de uma abstração nostálgica da Idade Média, que ele povoou com criaturas — elfos, anões, feiticeiros — hoje inseparáveis do nosso imaginário medieval. Mas em todos esses casos, o passado foi muito mais do que uma estética: ele foi uma alegoria revolucionária para o presente.

Ora, os renascentistas não fizeram cosplay de Grécia Antiga: eles estudaram os gregos como diretriz para criar uma sociedade que pensa e questiona. Seu movimento não foi uma reprise; foi uma revolução. Somente quem é autêntico pode ser revolucionário. A autenticidade é a manifestação cultural do aqui e agora.

É esse aterramento que falta à nostalgia de hoje, que oscila entre o reacionarismo e a fuga. Mas de que, exatamente, estamos tentando fugir? Por que estamos tentando voltar no tempo? Me parece que, da esquerda à direita, nossa relação com o futuro vem desandando do fascínio ao agouro. O progresso tecnológico exponencial das últimas décadas materializou sonhos, mas trouxe consigo a insônia de um mundo cada vez mais inquieto, desigual, desaterrado. E quando a tecnologia rompe com as supostas amarras do aqui e agora em nome da conveniência do tudo, em todo lugar, a todo momento, o local dá lugar ao global; o subjetivo, ao universal. O resultado é um presente genérico e produtizado, onde temos acesso a tudo e vínculo com nada. Um presente ansioso e desalmado, onde qualquer contemplação é devorada pela defasagem.

Desencantados, buscamos refúgio no passado: um lugar mais sincero e menos barulhento. Para tonar esse refúgio mais verossímil, vamos nos cobrindo de artefatos e sons e imagens anacrônicas e nos transformando em personagens de um presente alternativo. E assim, a nostalgia se torna nostalgismo.

Herzog não disse que nos faltam imagens atuais — ele falou de imagens adequadas. Imagens que reacendam a nossa paixão pelo presente. Imagens mais autênticas e revolucionárias. Nossa imaginação está ao mesmo tempo obesa e desnutrida.

Quem sabe tenha sido a constatação do papel da tecnologia nesse processo que o levou a abdicar de efeitos especiais em Fitzcarraldo. Em vez de lonas de chroma key, Herzog optou por longos dias de filmagem no meio da mata, submetendo a equipe a trabalho braçal, calor, insetos e discórdia — condições que emulavam aquelas da própria história.

Foi também durante esses dias na Amazônia que Herzog envolveu-se nas primeiras de muitas brigas coléricas com Klaus Kinski, o icônico ator de olhos esbugalhados que interpreta o protagonista. Herzog e Kinski viveram uma lendária relação de amor e ódio, marcada por quatro filmes e múltiplas tentativas de homicídio, conforme documentado em Meu Melhor Inimigo, de 1999. Uma relação que talvez nunca teria existido se, em 1982, Kinski tivesse aceitado outro papel: o do caricato Sturmbandführer Toht, em Caçadores da Arca Perdida. Mas o ator recusou a oferta no ato, dizendo a Spielberg que o roteiro era uma "pilha enfadonha de bosta".

Por mais que eu admire sua reação sincera, me parece que ele falhou em reconhecer a genialidade irônica do texto que tinha em mãos: uma sátira do herói pastelão, repleta de nostalgismos hilários sobre a Segunda Guerra e a Antiguidade.

A meu ver, Spielberg se importava tanto quanto Herzog com a carência de imagens adequadas na nossa civilização, mas escolheu um caminho radicalmente diferente para buscar autenticidade: em vez de recusar a tecnologia, ele a abraçou; e em vez de resistir aos arquétipos clássicos do cinema, ele os parodiou.

E com Indiana Jones, Spielberg nos presenteou com uma das maiores obra-prima do dieselpunk — um filme que alimentou a minha infância com muitas imagens que perduram até hoje.

Será que alguma barraquinha dessa feira vende chapéu?